sexta-feira, 6 de julho de 2012

Falsas representações


Se Dilma quer ser presidenta, seu vice será vice-presidente? Esta e outras besteiras sobre a flexão dos gêneros masculino e feminino
Sírio Possenti

Sabe-se que os humanos desenvolvem, em pouquíssimo tempo, a capacidade de falar sua língua, isto é, a língua tal como é falada na sociedade em que nascem ou começam a sua vida. Qualquer pessoa pode verificar que isso é verdade - basta observar as crianças.

Um obstáculo para a compreensão dessa óbvia verdade (que exibe uma das principais características dos humanos, que são seres falantes) é a ideia de que as pessoas, desde sua infância, falam, é verdade, mas falam errado.

Ora, não falam errado, se sua língua for avaliada em si mesma, e não em comparação com outra, ou com a variedade de outra comunidade, ou, quando é o caso, com a língua escrita, que segue em parte uma longa tradição que as crianças, obviamente, não conhecem.

Observada em si mesma, a fala de qualquer pessoa ou comunidade segue as regras da gramática de uma variedade linguística. As crianças aprendem a falar a língua que se fala com elas e em torno delas. Se essa língua vale pouco numa sociedade, esse  é outro problema, que pode ser mais ou menos grave, dependendo dos projetos políticos que envolvem a língua nessa sociedade.

Mas, além de aprender uma língua, os cidadãos aprendem também avaliações dela. Incorporam, como se fossem verdades, determinadas representações da língua. Algumas são bem gerais, como as que dizem que a língua é bonita ou feia, lógica ou ilógica. Aprendemos nossa língua.

Mas há também avaliações relativas  a detalhes da organização da língua. Uma delas, no caso do português, é a ideia equivocada de que finais em a são femininos. Além disso, estende-se essa avaliação a outras línguas, como se elas seguissem uma regra, ou uma falsa regra da nossa. O que dá boas piadas, de fato.

Livros de introdução à linguística incluem anedotas como a seguinte: vendo o nome Andrea Pirlo numa lista, pode pensar que se trata de uma mulher. Acontece que é um nome italiano (de um jogador de futebol, no caso). E o italiano Andrea  não equivale a Andréia (os escrivães eliminarão este acento?), mas a André.

E há casos ainda mais interessantes, que provocam raciocínios estranhos. Muitos pensam que, se o “a” final indica feminino (como em menina), então o “o” final indica masculino. E desandam a dizer besteiras como a seguinte (a besteira circulou na pena dos “melhores” colunistas de jornal): se Dilma quer ser chamada de presidenta, seu vice será vice-presidento (esquecem que o masculino é presidente) e Millôr seria um humoristo (esquecendo que o gênero de “humorista” só se marca nos artigos ou nos adjetivos: o/a humorista, um/uma humorista, humorista gaúcho/gaúcha).

Em termos mais técnicos (as gramáticas e dicionários mostram isso), “a” final só indica feminino quando se trata de uma flexão do masculino, que nem sempre termina em “o”, como acabamos de ver.

Por exemplo, a flexão de gênero de parente (com este final) é a parenta. Mas, dado este feminino, é puro engano achar que o masculino deveria ser parento. Simplesmente NÃO HÁ FLEXÃO DE MASCULINO EM PORTUGUÊS, isto é, formas masculinas que derivam das femininas.

Na gramática real do português, o dito masculino é apenas uma espécie de nome da palavra. Por isso esta forma é a entrada nos dicionários, assim como o infinitivo é a entrada dos verbos.

Revista Carta na Escola, junho/julho de 2012.

Nenhum comentário:

Postar um comentário